29/01/10

Crónicas C’um Caneco - Dia 9

Uma vez chegados à entrada do antigo edifício onde Eugénia vivia, cujas rachas na fachada principal se assemelhavam a separados lábios a pedir ajuda para sarar aquelas feridas, Rodolfo abeirou-se daquela mulher, colocou-lhe um braço por cima do ombro direito, apoiando a mão na parede, e numa profunda inspiração disse-lhe, quase em tom de sussurro, que estava entregue e em segurança. Eugénia, pela primeira vez desde que este maldito Domingo tinha dado sinais de vida, sentiu-se, agora sim, realmente detida. Presa. Amarrada. Aquele braço, que nem sequer estava em contacto com o seu corpo, emitia uma energia atrativa de alta intensidade emocional. Completamente magnetizante. Por alguns instantes a figura de Tobias não lhe toldou a mente.
De modo algo envergonhado, mesmo com algum embaraço, arriscou convidar o Inspector para um café, fazendo figas para que ainda houvesse algum na lata, onde o costumava misturar com xicória.
O Inspector Rodolfo parecia que estava já à espera daquele convite, tal foi a rapidez com que o aceitou. Foi, igualmente, uma forma de aliviar a tensão que se tinha apoderado de Eugénia, mulher habituada a lidar, desde há muito, com todo o tipo de homens, mas que, por alguma razão que lhe estava a passar completamente ao lado, não estava a conseguir dominar a situação que se lhe deparava.
Após um ligeiro impasse, que passou pela atrapalhação com que Eugénia passou por baixo do braço, que Rodolfo, teimosa e propositadamente tinha deixado ficar encostado à parede, lá subiram os dois, até ao segundo piso, pelas velhas escadas de madeira.
Como sempre acontecia, Eugénia Epifânia teve que pousar a sua bolsa sobre o corrimão, de modo a poder procurar a chave de casa por entre toda a tralha que carregava dentro da mala, tal qual como a maioria das mulheres. Finalmente, e após ter despejado quase tudo cá para fora, lá apareceu a dita cuja. Num ápice, fez ranger a chave na fechadura, rodando-a de forma abrupta e puxando a porta para si, para de seguida a empurrar com uma joelhada e a abrir.
De imediato, soltou um grito assustado. Rodolfo, também apanhado de surpresa com aquele grito, entrou de forma atrapalhada pelo apartamento, onde, ao fundo do corredor, se encontrava Vanessa, a viúva oficial de Tobias, naquilo que se podia chamar, em gíria, a fazer uma “espera”. Não contava, entretanto, era que Eugénia estivesse acompanhada pelo Inspector da Polícia, a quem naquela manhã, bem cedo, já tinha prestado declarações.

(Continua um destes dias...)

05/01/10

Crónicas C’um Caneco - Dia 8

O entardecer daquele dia em Lisboa estava particularmente bonito. Os últimos raios, alaranjados, de sol trespassavam por entre janelas, varandas e varandins de prédios antigos, realçando as formas minotáuricas esculpidas na pedra, com que algumas destas construções alfacinhas foram brindadas nas décadas de 50 e 60 do século passado. Lisboa, naquele Domingo, encontrava-se ainda mais romântica.
Entre as instalações da Judiciária e o apartamento de Eugénia, distavam apenas cinco ou seis prédios, intercalados por duas pastelarias, uma delas modernaça, daquelas que vendem pão quente a toda a hora, uma taberna típica, do Sr. Alípio, e o quiosque Saphar. Ah, e faltava a Funerária. Aquela cujo dono a tinha batizado de “Cá Te Espero”.
A zona era conhecida tanto por Eugénia, que aí vivia, como por Rodolfo, que aí passava grande parte do seu dia. Os dois caminhavam calma e serenamente pelo passeio estreito, aqui e ali obstruído por carros que teimavam em estar mal estacionados. Por ironia, alguns deles, pertenciam mesmo à polícia...
Rodolfo, como que impulsionado por uma força desconhecida, tinha inventado uma desculpa esfarrapada para com os seus colegas, e tinha aceite a sugestão de Eugénia para que a acompanhasse até ao seu prédio. Os subordinados do Inspector tinham ficado boquiabertos. Pela segunda vez no mesmo dia, foram surpreendidos pelo chefe. Aquele tipo carrancudo tinha passado a cordeirinho em apenas algumas horas de interrogatório a Eugénia Epifânia.
- Não há dúvida! Exclamou Matos Leitão. O nosso Inspector está apanhado. E pela assassina. Agora que vai passar um bom bocado...ai, ai..ui, ui... disso não duvido. Só espero que não lhe “palite” os dentes com um picador de gelo. Lembram-se daquele filme com a loura boa que sabe como cruzar as pernas?
- Simmmmmmmmm, exclamaram os outros agentes! Já conheciam a fixação de Matos Leitão pela Sharon Stone há muito tempo. Até diziam que o Leitão tinha ficado vesgo por isso mesmo, tanta vez o homem já tinha visto (e revisto) a cena do cruzamento de pernas de todos os ângulos. Pensam até que o colar cervical que usou durante duas semanas, há uns anos atrás, a isso se deveu...
Mas eles estavam preocupados mesmo era com o Inspector...

(Continua um destes dias...)